Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA: o direito à convivência familiar e comunitária

04-12-2010 06:14

Para iniciar o diálogo, proponho revisitar o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária  aprovado em assembleia dos Conselhos Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e de Assistência Social (CNAS) em dezembro de 2006. A novidade do plano diz respeito à concepção de políticas publicas em sua dimensão  integrada. Não está focado apenas na criança e no adolescente, mas se estende à família e à comunidade. O propósito do Plano visa fortalecimento da rede de proteção social à família, de forma a prover-lhe todo o suporte necessário à criação e à educação das crianças e a minimização dos prejuízos decorrentes das situações em que a separação é inevitável. Também, são previstos o reordenamento dos abrigos e a promoção de políticas públicas voltadas para o desabrigamento e para a construção de alternativas ao acolhimento de crianças e adolescentes. A prevenção do abandono de crianças e adolescentes, a efetivação de medidas de proteção previstas no ECA no tocante à estruturação dos programas de apoio sócio-familiar e o enfrentamento à violência doméstica também são ações previstas no documento. É um plano que apresenta mudanças estruturais ao trazer a dimensão da singularidade da criança e do adolescente respeitando a sua diversidade cultural, étnica, sexual, de gênero ou relativa aos deficientes localizando-os em sua família e na comunidade. 
O Plano Nacional do Direito à Convivência Familiar e Comunitária apresenta a radicalidade de enxergar a totalidade do ser criança e adolescente em seu grupo de pertença (família e comunidade). As crianças e os adolescentes não brotam do asfalto. Eles possuem uma história, uma localização no espaço e no tempo. Especialmente no que diz respeito àqueles que se encontram em situação de/na rua. Com essa preocupação os CMDCAs dos sete municípios do Grande ABC e outros atores sociais elaboraram o Projeto Grande ABC Integrado (iniciado em 2007) – Crianças e adolescentes em situação de rua: tecendo uma rede de proteção integral para garantia do direito à convivência familiar e comunitária’. Recentemente, em reunião pública,  foi apresentado o relatório da etapa um (dividido em fase I, II e III) da totalidade desse projeto . Esta etapa foi executada pela Fundação Projeto Travessia e Cátedra Gestão de Cidades da UMESP com financiamento da Secretaria Especial dos Direitos Humanos do Governo Federal e do Fundo Municipal do CMDCA de São Caetano do Sul aportado pela Fundação Telefônica.
Os resultados consolidados da etapa 1 da pesquisa apontaram para um movimento característico de crianças e adolescentes em situação de rua, que acompanha o ritmo de trabalho, lazer e consumo nas cidades, definindo o final da tarde de sexta-feira como um momento privilegiado para a contagem e revelador dessa sincronia entre pontos de concentração e fluxo urbano. O que mais chama a atenção no relatório apresentado são os mapas que representam a Rede Social de Rua (RSR) e a Rede de Políticas Públicas (RPP), bem como a permeabilidade entre essas redes. Pela análise das redes, pode-se afirmar que a rua representa uma escolha e não apenas uma situação inevitável (seletividade). Essa escolha é reforçada e estruturada pelos vínculos comunicativos (compartilhamento de experiências) com praticamente a mesma intensidade. Na representação comparativa das quatro categorias de análise, pode-se observar que a seletividade aparece com maior intensidade, seguida de comunicabilidade em segundo lugar, laboriedade em terceiro e durabilidade em quarto. Por sua vez, a atividade trabalho aparece representada em intensidade menor, uma vez que nem sempre os entrevistados estão em situação de rua em função de atividades “monetarizadas”. A categoria durabilidade é representada como sendo aquela de menor intensidade dentre as quatro categorias que estruturam as redes. Pode-se observar que a permeabilidade entre as duas redes (RSR e RPP) apresenta uma intensidade máxima de 50%. Ou seja, na forma como está estruturada hoje, a RPP pode influenciar (fragilizar) a RSR apenas até esse nível, chegando a uma influência nula em alguns casos. Nesse limite, pode-se afirmar que está operando forças equilibradas entre as duas redes (RP e RSR), fato observado em duas entrevistas. Entretanto, nas outras entrevistas ganha força cada vez mais intensa a RSR, ao mesmo tempo em que se fragiliza a RPP (até ser anulada). Os resultados relatoriados sinalizam para uma discussão mais ampla, que diz respeito às contribuições da pesquisa para a construção de políticas públicas integradas. Essa discussão, entretanto, deve enfrentar em primeiro lugar os paradoxos e mitos sobre crianças e adolescentes em situação de rua, que surgem como síntese do diagnóstico, portanto, para impactos sociais de RSRs fortalecidas e RPPs fragilizadas. Os paradoxos enfatizam a complexidade de políticas públicas integradas para as crianças e adolescentes em situação de rua. São eles: “Quando a rua é mais protetiva do que a comunidade”; “Quando os programas de distribuição de renda não tiram da rua nem do trabalho”  ou “Quando não se está na rua apenas por causa do dinheiro”; “Quando a rua profissionaliza e é local de aprendizagem” ou “Quando a rua não tira da escola e a escola não tira da rua”; “Quando a dinâmica da rua está tão incorporada ao cotidiano, que a rua passa a representar a comunidade”; “Quando o educador de rua, como política pública, representa a ‘ordem pública”.
Esses resultados são desafiadores para um diálogo com o Plano Nacional do Direito à Convivência Familiar e Comunitária. Para tal, faço uma livre associação com a palavra oikos afim de  tecer algumas reflexões. Oikos é uma palavra de origem grega cujo sentido refere-se à casa, lugar onde se vive. Há outro termo que possui a mesma raiz oikia, assim oikos e oikia possuem o sentido de família e casa. O conjunto de oikos  formava o eixo central da organização política e social do Estado como realidade social, econômica e política mais fundamental do mundo antigo. A casa, o lar, a família, a linhagem era o lugar onde a pessoa construía seu sentido de pertença. A palavra grega oiken significa habitar, residir de modo permanente, estar em casa. Todas as palavras originárias de oikos significam a base e modelo de vida social e política no mundo helênico. Assim, em seu sentido originário  oikos como casa, lugar onde se vive não separa a pessoa do seu entorno, do seu grupo de pertença e da sua história. A proposta do Plano Nacional possui em sua estrutura originária como potência uma aproximação com a concepção de oikos. Resta saber, se os dados levantados pelo diagnóstico do Grande ABC, que aponta cinco paradoxos presentes na complexidade do fenômeno das crianças e adolescentes em situação de/na rua será considerado na formulação das políticas públicas infanto-juvenis nas 7 cidades como cumprimento do Plano Nacional do Direito à Convivência Familiar e Comunitária. A expectativa é de superação das velhas concepções fragmentadas e fragmentadoras da vida que produzem uma política desconectada da realidade. Voltando a palavra oikos como família, a casa e a comunidade (entorno) a política para o Grande ABC deverá contemplar os resultados dessa pesquisa se quiser superar a mesmice e trazer o princípio da proteção integral como eixo ordenador do trato infanto-juvenil.

Professora Dagmar Silva Pinto de Castro
Membro do Comitê Executivo da Cátedra Gestão de Cidades
Faculdade de Administração e Economia - FAE

 

Voltar